Atlântica em 6 Atos

(escrito a duas mãos: a direita minha, e a esquerda de um poeta e pintor italiano)
Um dia, chegando do trabalho, encontrou um homem estranho: muito alto, muito branco, muito magro. Não era daqui, logo viu. Não era humano, logo percebeu. Mas de tanto viver, a mulher não temia mais muita coisa. Ele disse que a acompanhava há algum tempo, e que sabia que sofria de amor distante, e que a achava tão fascinante que poderia ajudá-la, se ela também o ajudasse. O que ele pedia em troca era simples: queria que ela dançasse para sempre em seu baile, todos os dias a noite, todos os dias, as mesmas músicas tristes, para sempre, em seu mundo paralelo dos sonhos. Mas não sabia o que fazer por ela, para aproximar esse amor. A mulher não precisou pensar, decisão simples:que a transformasse em uma sereia, assim nadaria por todo o mar até encontrar seu amor.
E assim foi, ela sereia, foi encontrada por um homem distante, no mar, durante uma noite de tempestade que quase transformou a noite em dia, quase morta, cansada de tanto nadar por todo mar. Ele cuidou dela, era um homem doce, mantendo-a em uma banheira de água salgada, onde se amavam todos os dias. Mas à noite, seus sonhos foram roubados, eternamente.

ATO 1:
Agora nada é mais possível, mas ainda pode ser.Suas palavras me calaram. Estou temporariamente calada, ausente de mim.Tudo fragmentado, o pensamento em pedaços, o sentimento à flor da pele. Me deixa a esperar.
Sem dúvida ainda é noite. Nenhuma claridade chega do lado de fora. Em torno dos lençóis brancos, ele que dorme, acorda.O mar chega em frente ao quarto. A manhã não deve estar longe. É o mar insone que deve estar ali, bem próximo às paredes. É mesmo o seu rumor, vagaroso, exterior, cansativo.
Ela abriu os olhos.Eles não se olhavam.Há várias noites que isso acontece, desde que ela chegou em sua casa.Ela dorme. Ele chora.Chora por imagens distantes, por lembranças eternas.
Nenhuma definição exterior se apresenta para explicar o que estão vivendo.Ele não fala de sua vida, as palavras não estão ali, nem a frase onde colocar as palavras. Nenhuma palavra dele, nem dela, nenhuma solução para evitar o sofrimento.
Exceto pelo fato de que, naquela noite, ele leu o que ela escreveu sobre ele.
[Quando as tempestades eram fortes, em determinadas noites, ouvia-se claramente o movimento das ondas contra a parede do quarto e seu rebentar através das palavras. Vez ou outra, ouvia-se no mar em calmaria, o apertar das mãos, dele e dela.]

ATO 2:
Ela deixou a porta aberta, enquanto estava dormindo e ele saiu.Volta no meio da noite.Ela está ali, encostada na parede, longe da luz, não consegue parar de chorar, queria procurá-lo mas não conhece a cidade, teve medo. Ela o viu morto, e se viu sozinha, em um lugar que não conhece.Ele se aproxima dela, espera. Deixa-a chorar.Ele diz: "mesmo dessas tristezas, desse medo, você não sabe nada."Ela diz: "saber você é não saber de nada, até de você, você não sabe nada."Nada que venha de fora de mim ou de você pode nos ensinar.
Ficaram ali, silenciosos, um longo momento enquanto o dia chega e, com ele, o frio penetrante. Cobrem-se com os lençóis brancos.

ATO 3:
Às vezes, nos movimentos do sono, as mãos de tocam para em seguida fugirem.Às vezes distração, os corpos se aproximam e despertam algo rapidamente encoberto pelo sono.Às vezes ela se vira.Às vezes, na madrugada, atingem as camadas mais profundas da ausência, onde apenas a respiração permanece.Às vezes, pode-se dizer que nada mais acontece além dessa mentira.
Ela acorda, olha-o assustada e pergunta: "quem é você?"Ele responde: "um fantasma".
Quase 150 dias desse amor impossível, dentro de um fim-de-semana de calor sufocante.Do outro lado da janela, caía o dia, a madrugada se foi.
Ele agora tinha nome: fantasma.
[Um dia de manhã e céu azul, de sol forte e de restos de sonhos com gosto de café na cama. O mar é de um azul leitoso, o céu azul gasoso e o amor é líquido.]
Ela diz: “se um dia chegar, lhe chegar a saudade daquilo que foi invivível, quer dizer, daquilo que foi tentado por mim e por você naqueles 150 dias, então chover sobre o mar, a voz poderá se pronunciar.”
Houve um silêncio.
“Bom dia”.

ATO 4:
Quando eu encontrar você depois de horas de esperavocê levará minha vida para onde se encontra o tempoo espaço entre nós antes tão distante;agora é o momento onde você está
Ingênuo e sábio o instante se perde dentro dos diase ajusto o meu espaço com as batidas do meu pulsobatendo: violento e suave – talvez selvagemo tempo que eu espero que seja.
[mas é sempre assim, toda paixão é feita de coincidências miraculosas, como uma ligação original, incestuosa, feita da força do amor que é retirada de sua própria impossibilidade. Amor desesperado, imobilizado, nessa dor do desejo, do desejo insuportável e não confessado entre duas pessoas impedidas de dizer. Mas o que não se diz, escapa todo tempo: impotente e no entanto existe. Sabem mais do que os outros, no sentido de silenciar o amor, mas não sabem vivê-lo]
Ela vai sair, vai deixá-lo, não pode mais ficar, está triste, precisa respirar. Depois do longo abraço que durou toda uma noite, o dia retornou com sua realidade impossível. Não sabe o que fazer, vai para o mar. Só o mar a deixa calma, ele sabe que ela ama o mar.
Pensamentos flutuantes.Sentimento vidro.Céu cinza gasoso.Mar azul leitoso.Amor líquido - que vaza agora por todos os poros.ela espera sua carta, grita em silêncio, mas o paraíso não ouve."let it begin, heaven cannot wait forever"

ATO 5:
Ela começou a movimentar-se, caminhou em direção às paredes procurando portas imaginárias. Finalmente, talvez, encontrou a direção verdadeira.Tinha gritado: não se engane, não faça da sua vida um engano, mas não adiantava.Ele, tão bonito, lhe escapava das mãos como água, mas o pouco que ela conseguia reter valia todo o esforço.Ela não quer mais esse amor. Nunca. Ele morreu até seu cheiro é de amor morto. E sonha com um outro tempo, onde a mesma coisa vai ocorrer de forma diferente.
Pede ajuda. Ele não ajuda.Pede socorro. Ele não ouve.
- Ah, amo tanto você!- É?- Sim, tanto...- É a primeira vez que você se engana?
Ela chora. Suas lágrimas ocorrem novamente, de longe, por detrás das lágrimas, esperadas como todas as lágrimas, enfim chegadas, ela dorme. mas não em seus braços...

ATO 6:
Chove.Chove sobre o mar.Chove sobre o rosto gotas de lágrima e chuva.Chove desde sempre, uma chuva fina intermitente.As crianças amam a chuva, elas gritam.Ela queria poder gritar toda a dor que sente, mas não é criança.Seu corpo inteiro dói a dor do amor distante. Hoje ela não respira: sufoca em gestos.Às vezes, ela olha para ele sem conhecê-lo. Sem conhecê-lo de modo algum, nenhum mesmo. Ela o vê longe desta praia, longe do seu mar, em outro lugar, lugar distante, longe. Ele, o estrangeiro, não deixa lembranças. Sua lembrança está dentro dela, na sua presença. Ficam seus olhos, fica sua voz, para sempre dentro dela.E faz frio.
Um dia, como hoje, chegará a saudade daquilo que não foi vivido, e chegará com tamanha violência que levara o corpo dela, vazio de si, e cheio dos olhos dele, para um lugar sem retorno.
Terrível amar assim, com a força do vento que sob o céu negro lambe o mar.Ela se cala. Chora por horas. Chora toda a chuva.Eles olham o mar para não se verem.Ele também chora.Ela anda em direção ao mar, ele olha para areia suas marcas, pela última vez.Não a vê entrando na água, não a vê desaparecendo no mar, não quer ver a despedida.Ele não entende mais as diferenças entre o que se passou e a realidade, entre o que o cerca e o que o mantém vivo, entre o que o separa desta vida e o que a faz viver.Ela em sua intensa fragilidade não existe mais.Ele, não sabe se um dia, ela teria existido.

(por Marguerite Duras e Antonio)

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